quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Noite, silêncio
ouço bater as horas
Ela terá de volta essa hora morta
Bate meu coração em Descompasso,
numa ânsia de saber, numa agonia.
Ergo-me a ver.
Meus passos têm
na casa vazia
nessa hora morta uma sonoridade
Abro a janela, espreito
Ninguém.
Deserta a rua
que assim continua
Arfa-me o peito
E fico a olhar
A rua tonta esmo!
Sossega coração, foste tu mesmo
que bateste de amor
E de paixão!

sol

Um pouco de sol
para se ter contato comigo
um pouco de sol
para se ter contato consigo
um pouco de sol
para se fazer mais vivo
um pouco de sol

Um pouco de sol
e a lagartixa se espicha
um pouco de sol
e as notas se rabiscam
um pouco de sol
de guitarra
de areia
de flor de violeta
um pouco de sol azul
por mim!

domingo, 7 de novembro de 2010

A vida prega peças
A vida joga
uma trança de quereres
Eu o vi ontem na roda de samba
Estava pleno, grande e inteiro
Lúcido
Pegou-me em carne viva e crua
Jogou-me
Oh, Destino cruel, por quê vem assim,
dizem soprado pelo vento
digo, pintando em tinta a óleo
sangro-me, agora
É o preço?
É o desejo?
E depois?
Vá embora.


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

amortecer
amor tecer
a morte (s)cer.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

bela noite

Além do despertar de cada sonho

Além do semblante de uma vela acesa

Além do chacoalhar das asas de um pombo

Além da consciente segurança de sua própria certeza

Além do cruzar de olhos enamorados

Além de soletrar sua palavra mais íntima

Além da descoberta do destino traçado

Além do perfume de uma rosa pequenina

Além da saudade chorada e aflita

Além do beijo furioso e eterno

Além do soluço da despedida

Além do aperto de mão esquecido

Além da recompensa inesperada

Além de seu vislumbrante sorriso

Além da mais pura poesia rimada

Além de todo além infinito e sereno

Abri os braços e tive todo o céu noturno em sua dimensão.

Assim, além fui de mim

Além e avante

Uma lágrima explode de felicidade.

amadurecimento

Escrevo quando sou eu mesma. Minhas palavras saem à toa. Não sabem o seu futuro ou talvez já o são. Palavras são a única fuga da solidão. Tenho que aprender que as pessoas não são personagens, meus personagens. Elas estão fora de meu espaço. Elas estão fora de meu alcance. Meu alcance se resume aos meus pensamentos. Pensamentos obscuros, cinzentos e azuis. Minha vida, meu pensamento tento palavreá-los, mas não sou compreendida. Minhas palavras se resumem a isso. Somente isso. Assim sou-me. Detesto cair. Detesto subir. Fico sempre inerte ao mundo e às idéias alheias. Só o meu importa. O traçar destas palavras solidificam minha alma. Encho-me tanto de mim neste momento que transbordo-me. Não me caibo. O tempo não existe. Ele é o amadurecimento da matéria. Eu não amadureço. Esta palavra eu desconheço. Sou-me sempre. Este vazio obscuro. Esta ideia desconexa, este todo desconhecido, descurioso e obvio como a chuva que lambe nossas janelas, invade nosso cotidiano e lava nossa estrada. Sigo minhas pegadas já traçadas pelo pensamento anterior a sua significação. Cada palavra é uma pegada, cada palavra solta é minha sombra, é minha ovelha desgarrada. Sou a união de minhas sombras e nunca o seu concreto por inteiro. Não aguento esta polifonia de pensamentos gritando em meu oco. Eles travam minha boca. As palavras circulam em meu sangue, pulsa em minhas artérias. Sopra em meus olhos. Transformo-me em lua nua e crua. E, evidente, só. Só não vê quem não quer. Mas só sou assim quando escrevo. Uma felicidade plena. Nua e crua e minha. Cada palavra emerge seu único significado. Quando não as tenho sou a linha tênue entre o mar e o céu noturno. Reta, horizontal e plana. Amo-as. Amo as palavras. É a hora de meu maior jubilo. Minhas palavras caem nesta folha como minha lágrimas cairam no tempo. No ser inexistente. No eterno marco zero que sempre nos transforma no tal de amadurecimento. Significados de dicionário não existem em vocabulário, logo este amadurecimento não existe em mim. Aliás se existe, nunca percebi. Sou sempre verde. Mas se podemos colocar cor em nós, prefiro ser o azul-rei por puro desejo de grandeza. Por beleza, o vermelho, e por mistério o roxo vivo. Vida! O céu seria mais belo se fosse roxo. Claro que desejaria os olhos de seus espectadores enjoados. De repente, se o céu fosse roxo traria para a natureza a imperfeição. Palavra dicionarizada, desconhecida pela natureza sábia. Quero plantar uma árvore. Meu caderno está pesado. Será que a tinta da caneta pesa? Será que eu peso assim na Terra? Será que eu já pesei assim na vida de alguém? Por que os outros? Os outros são um inferno. Mas os outros personagens não pesam em mim. Pesam as cicatrizes, não as tatuagens. Ninguém conhece o pré-pensamento e riem quando dou voz a ele. Essas pessoas não conhecem nem a si mesmas. O meu eu-mesmo é tão de carne viva que sempre tiram um teco quando sou-me. Agora sou-me eu mesma, única e plena. E estas palavras já me tiraram o pedaço. Tenho medo de escrever porque sempre que escreve arranco um pedaço de mim. O arrancar de mim abre meus olhos. Vejo a realidade nua e crua e lua. Isto me dá antenas para a vida. A vida em si já é uma mentira, uma ficção. Ela não se conhece a si mesma. Coitada. Talvez ela seja sempre uma desculpa para as perguntas sem respostas. São coisas da vida. O ser humano é tão cheio de direitos e se dá o direito de inventar a realidade da vida. Ele é e ao mesmo tempo não é ninguém e muitas vezes ele é o próprio tempo. Tempo, tempo, tempo mano velho. Prefiro pensar que ele não existe. Ele é uma criação humana. Acho que não sou humana. Acho que sou anjo. Ícaro. Pelo menos existo em estado de anjo, e de amante, como diz Rilke – meu grande amigo pré-pensante. Segredos. Será mesmo que nós temos segredos ou eles existem como apóio de uma condição de existência. Ele não seria uma espécie de sombra de um pré-pensamento? A prática da vida seria um pós-pensamento. Eu sou anterior à vida porque eu sou-me sempre, sem tempo ou amadurecimento, sou-me a eterna essência. Sou-me.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Terra

Então, ela só corria. Corria numa velocidade que jamais imaginasse. A chuva respingava agulhas em seu rosto, mas, enfim, ela corria. E correria o quanto tanto pudesse. Era bem verdade que as calçadas apresentavam saliências e protuberâncias que, às vezes, a fazia tropeçar. As árvores também impediam seu percurso. As raízes se prontificavam, rasgando as calçadas, rompendo o asfalto. E os galhos. Os benditos galhos, carentes de altura, apontavam seus olhos, exigiam portanto que seus braços se estendessem pela proteção. Mas que proteção? Proteção, apenas isso essa palavra quase intransitiva. Enquanto corria ela confundia sua respiração com as palavras proteção, proteção, proteção. Após alguns momentos, as sílabas já seguiam a expiração e a inspiração. Mas por que mesmo que corria?
Parou. Encostou a mão esquerda no tronco da árvore para lhe servir de apoio. Respirou alguns momentos. A chuva respingava em seu rosto, lava-lhe, esfriava-lhe a face. Os carros passavam. Os faróis encandeciam. Do outro lado da rua havia uma farmácia e, ao lado, uma padaria.
Seu coração bombeava fortemente algo quente que repercutia para seu rosto. Podia senti-lo à cabeça. Seria essa a substância pegajosa a razão de sua fuga? Sim, fuga havia. Havia fugido. E fugiria mais e mais e. Continuaria a correr, então. Suas pernas já estavam duras. Mal se articulavam. Seu calcanhar já não mais aguentava o peso de seu corpo. Seus pés não eram mais o mar que carregaria aquele navio para o infinito. Infinito? Qual seria mesmo o porto em que ancoraria? Não sabia. Era melhor continuar correndo, fugindo, pisando, brumando, flanando passando pelas ruas. Invisível, suada, peguenta, molhada de chuva e de dor.
Começara a contar. 1, 2, 3. Isso a tranquilizava e a mantinha concentrada. 23, 24, 25. Passara a Igreja, seguira a escola, deixara a praça para trás. 77, 78, 79. Na verdade, nem olhara aquela praça. Sabia-a de cor, mas não a olhara porque sabia mas porque não queria lembrar que ali havia duas lagoinhas com peixes, com vitória-régias, areia, terra, terra, terra, terra, terra, terra, perdera as contas. Mamãe, qual o númelo depois de dezenove? É dezedez?
Quando levava seus filhos para ver os peixinhos, ajoelhava-se no chão e apertava a terra. Apertava, apertava, até fazer um bolinho com o formato de suas mãos. E deixava ali naquele contato um pouco daquilo que ela era, ou pretendia ser. E largava o bolinho no chão para se misturar à terra. Não queria lembrar da terra, mas repetia terra, terra, terra. Os banquinhos, fora naqueles banquinhos. Especificamente no segundo banquinho do lado direito, à frente do laguinho. Fora ali que ela o olhara e ele a dissera: mãe, como os peixinhos voam de avião? Vamos ver se tem peixinhos nas nuvens? Ela não lembrava, não podia, não queria. No canto esquerdo, havia um sorriso constante de lado, discreto, os lábios finos. Ela bem os conhecia. Mais difícil do que responder às passagens de avião aos peixinhos, era explicar aos outros dois irmãos que o número três não resistira à chuva e morrera de pneumonia. Não podia lembrar e por isso falava alto embaixo da chuva: 83, 84,85 e corria, corria, corria e, suavemente o cheiro a impregnava. Mais uma vez ela parara. Apoiara as mãos nos joelhos olhando a calçada rente a seus pés. Mas não enxergava nada. Queria arrancar aquele cheiro de si. Os carros passavam como um fundo musical. As pessoas passavam como cavalaria. Então ela se permitiu sentar ali na calçada molhada. Ali onde estava encharcada, suada, repetindo terra, terra, terra.
Respirava.
Seu coração batia, pulsava. Ela escorria. Encolheu-se apoiando a cabeça entre os joelhos e chorou. Chorou compulsivamente; chorou como a chuva que caía.
Então levantou-se. Limpou o rosto na blusa suja como se conseguisse limpar as lembranças e voltou a correr. Dessa vez no sentido de volta. Corria. Corria de volta. Precisava voltar para casa. Precisava se recompor. Precisava lembrar a verdade. Por isso correra. Passara o colégio, a Igreja, não olhara a praça, continuara, a farmácia, a padaria. Precisava servir o jantar.
Chegara em casa, abrira a porta suja de terra e lama, ensopada, melequenta, encharcada, cansada, com as pernas duras, girando, girando, girando, pulsando, correndo, deixando de ser, sendo, sendo. Assim sendo, subiu as escadas nas pontas dos pés para não deixar pegadas, ou arranhar o assoalho, e tomara um banho para limpar aquela imundície, mas no fundo sabia que por mais que se lavasse as reminiscências daquela pequenina voz ressoaria sempre. Estaria sempre dentro de si. Olhou-se no espelho e não se viu. Sabia era que estava mesmo atrás daquela máscara, atrás daquela matéria dura, rígida ao ponto de se quebrar. Escovou os cabelos por pintar e os prendeu como se recolhesse seus segredos. Vestiu um moletom e uma blusa de malha. Calçou os chinelos acolchoados para aninhar seus calos e, finalmente, desceu as escadas investigando se não deixara um resquício de terra pelo caminho. Ao descer o último degrau e dobrar à esquerda para a cozinha, deixava a corrida, os números, a respiração, os bancos, a terra, os peixinhos, o cheiro, o sorriso. Tudo deveria ter escorrido com a chuva.
Encontrou o marido sentado à mesa lendo o jornal, dois filhos a gesticularem e gritarem pela resposta a fome, um banquinho azul pequenininho junto ao fogão, e servira o jantar.
Mais tarde assistira à novela, deitara-se a cama, ao lado direito e fechara os olhos. Se sonhasse seria melhor …. que fosse com a família perfeita que acabar de ver na televisão.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Gostos

se te gosto
e tu não me gostas
se te gosto muito
e tu também
se tu não me gostas mais
então eu não te gostarei
mas se ainda me gostas em agosto
posso até continuar a te gostar gostando
ou até te gosto hoje
se me deixares te gostar assim de costas
sem tu me deixares gostar de ti de frente
se tu me gostas só de banda
ou de setembro, meio de lado
eu não te gostarei mais nunca nunca
nem até
e não verei se realmente tu não me gostas
e eu te gosto
e me gostas porque gostas de meus gostos
ou gostas de me gostar e de eu gostar de
gostar de ti.
gosto tanto de te gostar que acabo gostando de apenas
gostar talvez até sem ti no meio desses gostos
ou do gosto do gostar de agosto
gosto torto

sexta-feira, 16 de julho de 2010

psiu!

Fria?
Não, este realmente não é o meu apelido
Espia
Abre tuas pestanas
Observa melhor este castigo
Que talvez seja tua guia

Agora?
Eu sou apenas minha
Minha dona
Sou a minha
Engana
Cuidado
A aparência não é resposta
É exatamente a incógnita
Trataremos nesta obra

Tragédia?
Um bombardeio em minha mente
Ataca constantemente meus pés
O destino avisou que se encarrega

Minha aparência
Tua aparência
Nossa aparência
Que improcedência
Estrelas ensaiadas no céu.
E sob meus pés.

Silêncio!
Para quê pensar?
Se só se quer sentir?
O destino me aguarda
Farei dele o meu convento
Não por acaso estendi-me em flor

Cura?
Preciso dela em toda lua
Sou ela a cada nascente
Posso até deixar de necessitar da cura
Mas não esquecerei de respirar.

crepúsculo

Assim em estado bruto, no mais simples e delicado estado, naquele em que os olhos não veem. Naquele despido de refinações sociais, sem armaduras, sem escudos. Quando para a alma, a porta se abre. Porta construída de magoas dá entrada ao cristal.
Assim estava ela. Tentando ser a mulher azul porque o próximo crepúsculo seria azul. O próximo encontro seria o beijo azul. Assim estava ela. Dilacerada na cama dele, envolta nos trajes dele. Embriagada do cheiro dele. Suspirando. O sol chegaria mais tarde porque o próximo crepúsculo seria azul.
Assim sentia-se ela: boiando num bote sobre as águas claras, com a mão na água boiando num bote. Embaixo dela havia um espelho. Os dedos dela tocaram-no. Espelho de águas claras. Água de flores, água de cristal. Entre os dedos dela havia um cristal, sua maior preciosidade. Banhava-se ela num bote sobre as águas claras de flores com cristal, espelho. Será que essas águas fariam do cristal uma flor de narciso?
Mas, no turbilhão da correnteza, seu sonho se desfez. E em onda de muro de mármore se fez. Fria, lisa, escorregante, impenetrável, e pesada. A onda esbarrou nos dedos dela. Esbarrou no cristal dela. Esbarrou no bote dela. Ferira-se. E agora o próximo crepúsculo seria azul-sangrento. Sem cama, sem trajes, sem cheiro. O sol chegaria mais cedo porque o próximo crepúsculo seria azul-sangrento. Sentou-se na cama.
Assim em estado bruto, simples e selvagem, naquele estado em que os olhos não veem. Trancou-se em armaduras e escudos. Trancou-se no cristal. Alma trancada na porta de mágoas.
Assim fora o seu bom dia repercutido nas ondas sonoras graves. A boca dele movia. Ele falava, ela não o escutava, traduzia-o. Via-o em pêlos pretos no queixo, pretos, azul. Barba Azul. Não poderia! Ela o queria. Ele queria ir jogar bola, dar uma volta sem ela. Então, ela olhou o céu, azul, sentiu a brisa. Poderia voar. Poderia boiar no bote nas águas de céu. Então, ela queria o mundo. Ele queria que ela o esperasse. Esperasse assim: linda, plena, arrumada, engomada, na cama, de fetiche de renda, parada, concreta, pele, corpo apenas, corpo sem alma, sem cristal, parede de mármore. Mas se o mundo fosse feito em quatro paredes, ela os pintaria de azul. Depois jogaria água para transformar o concreto em vento. O amor é abrir as portas e janelas da casa. Não, não, não o esperaria. Que vá chutar a bola. Ele abriu os gritos e fechou os ouvidos. Ela queria brisa. Ele gerou uma tempestade. Assim a deixou em casa. Assim, ela respirou, respirou e flutuou pela mente afora a olhar a janela na velocidade do embrião que vira feto que vira filho.
Assim ela tomou junto de si uma lista telefônica para lembrar que a vida tinha razão. O sol. Sim, ele, o sol chegaria mais cedo porque o próximo crepúsculo seria azul – haveria de ser. Assim ela resolveu tomar banho para fazer de conta que era mulher como aquela que imaginava. Abriu o chuveiro e assistiu o espetáculo da água escorrer sem forma, sem cheiro, sem cor, espelho. Bem sabia que era sem forma, sem cheiro, sem cor como a água. Tampou o ralo e juntou água. Quem sabe boiaria num bote. Sentiu a chuvarada afagar suas costas. Afago. Juntou a água e viu seu reflexo. Ainda era meio-dia. O Sol, o brilhante sol avisava nas badaladas do relógio da cozinha. A tarde começara agora. Lavou os pés para lavar as pontas das magoas. Deitou-se na água juntada para lavas a alma. Alagou o banheiro. Transbordava. Abriu seus olhos e examinou o teto, piscava e respirava, piscava e respirava. Seus olhos alcançara a porta, mas não percebera o estrago, apenas percebera que não se cabia, sua alma trespassava.
Assim resolveu retornar com o cuidado dos pés. Quem sabe assim cuidaria dos calos. Tiraria um por um. Até chegar ao ponto de partida. Ao estado bruto. Aquele que os olhos não veem. Pés limpos. Descalços de calos. Puros como o cristal. Não terminou. O telefone tocou. Caminhando em direção ao parelho encontrou um estojo de renda e redondo e roxo. Parou-se no caminho. Abriu-o. Retirou o batom vermelho da cor da cereja. Pintou os lábios. O sol brilhava sangrento lá fora. Vestiu uma saia de pregas azul engomada. Vestiu a blusa rendada com filó azul. A tarde ainda começava e ela ainda não se tornara uma mulher azul porque o próximo crepúsculo haveria de ser rubro. Amarrou uma fita azul nos cabelos encharcados. Pintou os olhos de azul.
Assim quase azul caminhou descalça. Andou para a sala para o quarto para a sala. Achou uma poeira solitária na almofada. Água resolveria. Passou pano úmido. Achou outra poeira na estante da televisão. Passou outro pano. Assim lavou as paredes. Enchera um balde para lavar o chão que seus pés de calos cuidados pela metade pisam. Era pouco. Encheu outro balde para tentar fazer daquele piso espelho. Encheu todos os baldes da casa. Jorrou água na sala. Chuvarada. E se ria. Ria como o sol das águas das flores. O sofá tinha flores. Quem sabe elas não escorreriam para o chão e boiariam no bote na água espelho de flor. Agora o sofá estava molhado, o chão alagado, os móveis molhados e alguns cacos de lousa de enfeite fetiche escorregado quebrado no chão espalhados. Ela se espelhava, transcendia e ria. A tarde lavada. Não, não, não. Não haveria nenhum toque de rubro no próximo crepúsculo. Seu batom era suficiente. O telefone tocou. Tocou. Ela jogou outro balde d’água na sala desformada quebrada de cacos em forma de flor. Agora ele gritava um sussurro quase afogado além da janela. E que fora mesmo que dissera? Precisava lavar a voz cabeluda de pêlo preto. Não o ouvia, interpretava. Assim, a casa pingava.
Assim sentou-se no chão para procurar-se no reflexo da água, ou para observar os outros reflexos. Achou um fio de cabelo fraco que caíra em algum momento. Levantou-se com mais força e despejou mais água. Agora não haveria cabelo, nem sua fraqueza.
Assim sentara-se no palmo de água. Dobrou os joelhos para pôr seus pés na água para quem sabe afogar as mágoas. Olhou seus calos. Não os havia. Havia sangue molhado dos calos que tirara. Dói ficar em estado bruto. Dói o ponto de partida. A tarde alanrajava-se. Ela iria se tornar uma mulher azul. Não tinha tinta para pintar as paredes.Tinha giz de cera.
Sentou-se novamente com os pés dentro d’água e coloriu com força as paredes de azul. Teria que tê-las azul até o crepúsculo. Azul, azul de céu, azul boiando num bote na água de flor. O telefone chiou. Azul de cristal. O telefone. As páginas amarelas da lista telefônica boiava. O telefone, a voz, o vento, a pele engulhada, paredes azuis, paredes azuis, barba azul. A água começou a pingar pelo terraço. Não poderia, não poderia perder a água. Correra para o terraço para tentar segurar a água. Ela tinha força e insistia em escapulir. E ela segurava como podia. Caíra no chão, desfolhando os joelhos. Não, não, não. Precisava conter a água que escorria. Assistiria ao crepúsculo sentada num bote. Jogou mais e mais e correu e tentou conter a água com as mãos. E escorregou e caiu novamente. Desistiu. Recompôs-se. Ajoelhou-se como uma santa. Sentiu suas mãos flutuarem na água. Cravou suas unhas na roupa azul e molhada e rasgada e rasgou mais com raiva, com quase repugnância, descabelada, selvagem, em estado bruto, arranhou-se, feriu-se, sangrou. Limpou o batom com as costas da mão direita. Ficou borrada em aquarela. Queria apenas se sentir assim azul. Azul é o céu, azul é o mar, azul é a rainha que nós vamos coroar, cantou.
Assim sentada olhou o céu. Assim, perto do chão não percebia, por aquele ângulo, a vermelhidão no céu porque seus olhos só captavam o azul, um resto de azul. Respirou. O próximo crepúsculo seria azul. Mas piscou os olhos numa quase felicidade azul e sorrira roque acreditava ter alcançado seu crepúsculo azul. E numa fração de segundos, infelizmente suas pupilas encontraram os raios escarlates que insistiam em se espalharem pelo céu, contaminando-o.
Assim segurou seu resto de blusa rendada de filó azul com tamanha força que ao tentar arrancar de si, carregou vestígios de pele de seu seio, banhando-se de sangue. Fio vermelho brotando no peito. Não estava abrindo a porta feita de mágoas para a dor, nem para o escarlate. O crepúsculo teria de ser azul. Azul. Arrancou o resto do vestido. Cravou as unhas nos lábios para retirar o vermelho que lhe restava. Tiraria seus lábios juntos, para poder ter o azul. A água vazava pelo terraço. Depositou as mãos na água. Tentou segurar o seu cristal no meio da coloração rubro-azul que pairava no chão. Percebeu que cavava mesmo era o azulejo. Seus dedos agora contribuíam para a contaminação do vermelho em sua casa. Já tirara o batom. Já tirara o batom. O que mais faltava? Sua boca sangrava, seus dedos sangravam; seus arranhões no seio, nas costas, nas pernas, na cintura, sangravam, seus calos sangravam. Restava sua fita azul imaculada porque resolvera molhar a cabeça no aguaceiro que criara. Só cinco minutos de crepúsculo azul e ela ficaria satisfeita. Já tirara o batom, não haveria crepúsculo vermelho então.
Assim em estado bruto, no mais simples e delicado estado, naquele em que os olhos não veem. Assim estava ela tentando ser a mulher azul porque o próximo crepúsculo teria de ser azul. Estava envolta em seus restos de trajes azuis, com os dedos sangrando boiando no resto de água que fugia pelo terraço e se solidificava no jardim. Mas fechara os olhos para não ver. Podia imaginar. Podia imaginar. Podia sentir um grande caco de lousa quebrada em forma de flor em suas mãos que boiavam no resto de água. Ela podia senti-lo. Quem sabe não encontrara seu cristal? De olhos fechados imaginava a mais forte tonalidade de azul. O Crepúsculo azul. Azul-Rei. Azul, o rei, o imperador. Sentia as arestas do caco. Podia imaginar seu cristal. Dedilhou pelo entorno em busca de seu cristal. Não achara. Mas sorriu. Estava ali dentro para além da pele, para além da parede. Não teve dúvida. Trespassara a lousa no pescoço num caminho fio de colar. Cortara o pescoço. O sangue encharcara. O telefone tocava.
Assim estava ela: no mais completo estado bruto. Sem armaduras, sem escudos. Para a alma, a porta estava aberta. Porta construída de mágoas da entrada ao cristal. Quem sabe assim ele a queria. Seus olhos apontavam para um resto de céu. A tarde lavada como seus pés lavados. Dos calos retirados podiam sentir que gerariam outros calos. A tarde sangrava o azul, escondendo-se por trás da noite. O crepúsculo era um azul-sangrento, assim, azul-sangrento.

cafe preto

Seus olhos me buscam
Dois pontos pretos redondos
Um mistério
Uma ansiedade escondo
Talvez seja um sonho
Talvez obra de Deus
Mas bem que gostaria
De anoitecer nos olhos teus.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Esquecimento

É assim: letras apenas, que escorrem. Mas não há significados. Acho que os esqueci em algum ponto da noite. Essa imagem não é minha, máscara apenas. Imagens? Tenho outras, inteligente, culta, boba, lerda e esquisita. E agora sigo, numa segunda-feira torta.
Passo ante passo, sem lema nem fronteira, sem arma na algibeira. Pé ante pé, sem sapatos, nem calos - ou com todos - não os sinto. Respiro. Antes sugava sonhos, agora não o sei mais. É o preço do sonho não sonhar? Há um buraco no peito, sem carne nem ferida, só, vazio, oco.
Mas respiro, lentamente, de vagar, respiro, respiro.
Acho que flutuo, assim.

quinta-feira, 11 de março de 2010

papéis

Quando os dedos grossos do Destino te sugar
Quando Deus disser que te deu e tu nada recebeste
Quando precisares sentir o que é teu
Quando a sensação de chão desaparecer
E resultar em uma enchente em teus olhos
Quando olhares para trás e tua sombra não encontrás
Quando quiseres voar e tuas asas falharem
Quando tiveres vontade de cuspir em teu nome
Quando tua mão perder o tato
Quando tuas pernas perderem os passos
Quando a tarde cair pesada
Quando a aurora surgir cinzenta
Quando teu peito te sufocar, apertando-te toda a existência
Quando um grito surgir mas não soltar
Quando teu pensamento te arranhar
Quando tua des-existência vir abrigar-te inteira
Saiba, amiga,
Descerei do céu – ou de qualquer outro lugar
E guiarei teu barco
Carregar-te-ei gruta adentro em meu colo
Enxugar-te-ei a dor com minhas palavras
E te levarei de volta para casa, ou para qualquer outro lugar
Segura, eninhada
Tranqüilizarei teu silêncio
E beijarei teus gritos
Papel de amigo
Papel de mãe.

Desabafos

Meus braços são fortes de já levantar tantas identidades – tantos pesos. Agora, recolho-me às trevas. Preciso de um pouco de falta de luz para ver se minha sombra volta a mim. Será que ela vem? O jeito é esperar. Tantos quilos de espera. Fecho os olhos. Respiro. O ar que entra é o mesmo que percorre as estradas em busca de… Desliguem os postes. Quebrem as lâmpadas. Quero a escuridão aqui dentro. Quero a suficiente sobra. Desliguem os carros. Façam silêncio. Que ela só voltará na carona de um enigma. Distribuo as identidades que possuo sobre a mesa de pôquer. São cartas pregadoras de ilusões. Talvez vazia; acharei minha identidade fugidia. A saudade se lança em águas tenebrosas. Pesadas como o petróleo. Aquele ouro negro feio e lucrativo. Lucro meu me encontrar. Será? Respiro. Respiro. Em que esquina me esqueci mesmo?

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Quite!

Dei-me um espaço
- Um abismo
Para retirar o mar inteiro
- Com meus dedos
E preencher-me
- É minha única saída
Desta vida maldita e suas artes
- Meus cárceres
E preenchem-me
Um pássaro vermelho me circunda
- É o sangue
Que palpita, que pulsa que
De mim emerge
- E me enjoa
E me preenche.

Quadro

Você me vê quadro
Esquece que não tenho molduras
Pode entrar neste fantástico
E usufruir sem espessura

Você chega e abre a porta
(não deste quadro)
Pendura as botas
Seqüestra este espaço
E eu espero
E então lá se vão as horas
Não há toques
Entre nossas bocas

Você pensa que sou rica
Organizadamente repleta de qualidades
Você pensa que sou fita
De amarrar em cabelo de boneca
Você esquece que sou esperta e lagartixa.

Mas organizadamente percebo vocabulário
Palavras belas de enganar bonecas
E não lagartixas de plástico
Você senta, deita e dorme como o ar
Que se sabe, se sente e não toca

Esquece que sou matéria
Vivo de toque e aconchego
Crio agora poeira
Do tempo e da distância
Que saco!
Desabafo.
Cansa.

Agora sou organizadamente aquela boneca
De matéria quase morta
Um quadro sem molduras
Uma fita no armário
Pendurada entre suas botas

Você nem chega a…
Você esquece mesmo.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A gente

E daqui iremos pra onde?
O tempo corre e o vento leva
A gente ao tempo que tentávamos
Chegar, e não chegamos,
- tentamos.
Que nada!
Quero ter a ousadia de ter certeza
Que quero sempre
Sempre que quero é diferente
A gente
Pode ser
Quem sabe daqui pra frente
Voaremos como o vento para
O tempo que nunca chegamos.
Tentamos, tentaremos
Queremos?
A gente.
Querer?
Tentar.
Já somos, ou nunca seremos
E daqui, iremos para onde?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Em busca de mim
Achei-me no infinito
Perdida no mundo
Como passas ao vento

Minha infância
Escorreu nas águas
Deixando-me nua
sobre um tronco
Ausente de momentos
Apenas mãos de areia afagam-me
Tenho-me em meus braços
No ventre da escuridão acolhida.

Rosas

As águas fluem
O tempo passa
O azul jorra
Na madrugada.
O que sai do leite
Despeja no mar
E o que me dera?
Ir ou voltar?

Rosas me alisam
O sol esfria
Os olhos dele buscam os meus
Que emergem
Numa sinfonia vagabunda
Imagem maculada
Estrela apagada
Um sorriso, talvez
Um leve piscar
Rosas... e o que me deram?
Ir ou voltar?

sábado, 23 de janeiro de 2010

Meus olhos sangram preces
Como a pérola ilumina o asfalto
Meus dentes se travam
Num sorriso peralto
Meus braços abrem um
Azul em contínuo
Minhas pernas curtas
Fazem pontes entre os muros
Sobre os muros, além deles
Meus pés
Ah, eles assinam
Pegadas quase sagradas
Marcando momentos
Bons ou ruins
Não importa. São.
Eu vou
No contínuo
No absurdo
Na alma da verdade
Na sombra de um sonho
Eu vou
Com ypslon
E dois tês
Eu tenho-me
Eu existo
Alfaias gritam ao teu encontro.
Disfarço-me com um cruzar de pernas sob a saia.
Saiu-me com um sorriso.
Acendo um cigarro.
Num trago,
Sinto tu penetrar-me
Como o eco do violoncelo.

Quieto.
Um conselho, um palpite.
Palpito, pulso.
Educação, educação, educação?
Um trago.
O rasgo da insistência do mesmo acorde de violoncelo.
Meus olhos piscam um grito.
Disfarço com o cruzar de pernas sob a saia
Lá se vão as alfaias.

De repente...

De repente, não mais que de repente

A estrada se explodiu em flores

O palco virou azul

E meus pés em brasa

Saltitaram, criaram asas

Um sorriso

Uma trégua

Da guerra e da cruz

Ir em frente além da luz

Simplesmente ir em frente

Juntos, de mãos dadas

Com os pés em brasa

Asas.

E de repente, não mais que de repente

Num instante entre as explosões furiosas

Que alagavam minha sombra em pétalas

A noite se curvou de frio

E meus pés se fundiram na noite

A noite se derretera

O palco despetalou-se em cinzas

A luz progetou-se em um poste

As asas, em vaga-lume

E o sorriso em guerra e cruz

De repente, não mais que de repente.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Fiquei lá

Quer ser o que foi
e talvez um pouco mais
lembra as épocas
e decora as datas
conta os anos como se obtesse resultados
Cala, fecha os braços, sorri, exclama
e sonha
Sonha
Sonha
Sonha com o que poderia ser
Mas não consegue encontrar a
a fúria em si
Fúria que corrói o peito
Quieto e calado esquece de sentir
conta as bravuras
canta - e conta - as mulheres
os lugares com ar de rei
e olha
e pensa
mas obedece, se encolhe e treme
limitado como a lei
e insiste como a sombra
e olha e pensa
e (quase) sente
deseja, anseia
confunde-se no devaneio de Califa
Mas sabe, lá dentro
que o continente é maior
e na verdade
só tem medo
E volta a sonhar
quem sabe?
Com o que poderia ser
ou ter sido...
Será?

Novembro

E se olharmos para a noite e dela não sair brilho
e das flores não saem cheiro
se as mãos não compõem nota
o silêncio dá lembrança
e o suspiro se vai nos ventos
que balançam as saias.

Que se calam as alfaias
e tudo vira vento
vento negro
negra insensatez
que cacheiam os versos
Nós de tricô se confundem com anéis
de opala e se racham com trovões e espadas.