domingo, 31 de julho de 2011

Quase

Pedro era marinheiro mas encontrou uma flor grandiosa e vermelha pelos mares. Por quase um segundo, um segundo mesmo, Pedro deixou que sua âncora levantasse voo. Até sentiu cosquinhas nas costas como se nelas brotassem asas. Aqueles olhos e cabelos e lábios… Mas como todo homem bruto, selvagem, barbárie e marinheiro gritou a audácia aos mares, e, enquanto gritava, titubeou. Teve medo do grande e desconhecido e assustador fogo vermelho que emergia da pele e, por isso pesou seu navio nas veredas aquosas da cidade. Mal parou para se perguntar o que seria caso ficasse. Na verdade nem pensou, preferiu ser levado pelas águas da vida do que pelas iniciativas pessoais. Pedro era moreno do sol que o trespassava como a um vitral. Era cheiro, álcool e fumo como todo e qualquer marinheiro. Deseja as coisas supérfluas; aqueles prazeres fugazes sem raízes, é, supérfluos.  Por isso fugia. Vivia e curtia a vida como a carrossel. Vivia um sonho de brilho intenso que intensificasse sua intenção, a qual desconhecia ainda porque apenas experimentava. E crescia. E se perdia pelas glórias. Queria construir algo grande que carregasse o peso de seu nome, as marcas de sua âncora, um colar de coleção. E percebia, investigava e cheirava as coisas que aos seus olhos apareciam. Apreciador do belo,  viu a boneca de cera vermelha que mar nenhum derrete, e balanceou. Misturou suas águas nas águas daqueles olhos e viraram céu. Juntou suas pernas nas dela debaixo dos lençóis e, em silêncio, sem barulho de mar, sem cheiro de mar, as pernas se apertaram naquele balanço de tantas águas e deram um nó. Nó de cabelo, de pele e desejo, mãos, olhos e dedos. Nó de compartilhar a possibilidade, uma felicidade assim assim dourada, tranqüila demais, quentinha gostosinha, de segurança de ser. De ser apenas, ser em essência. Deram um nó no corpo, nos pelos, nos medos, nos ais. Deram um nó, nó de amassar flor em pó. Nó de nó mesmo. Nó de marinheiro, que se desfaz em segredo. Respirou alguns segundos e nem abriu os olhos para não ver. A realidade era cruel e grande e intensa e maior que as suas mãos. Mas bem caberia nelas porque ela era flexível e adequava como pétala de flor brava e vermelha. Ela fez barulho de espuma nos dentes e perdeu as palavras nas ondas do olhar. Só as encontrou ali atrás daquelas palavras reais; dos olhos dele que não se abriam mais. Ele se levantou e tomou café quente de fumaça aparente em silêncio entredentes.  Mas aos portos precisava navegar. E com o silêncio partiu. E não enxergou que a boneca por dentro tinha carne e poderia, talvez, quem sabe? O vento do leste soprou. E dali, para além dos mares, dispersou, deixou-a nas águas  para algum outro pescador.

Preparação

Retiro a maquiagem
e apago as ilusões
bebo água
para lavar o corpo
lavo a sala
para esfriar as pernas
esfrego o sofá
e aniquilo os sussurros
Escuto o silêncio
esqueço o eco
desligo o jazz
ponho um pouco de guitarra
para reascender a alma
guardo as panelas
para pendurar o passado na estante
troco os lençóis
para lavar o cheiro
devolvo os livros
os pensamentos,
ao seu lugar de poeira
guardo os sertões
porque a vida é mesmo feita de chuva
sem sol rasgado
sem luta,
pacata, fria e metódica
calculada que apenas assiste
a poeira se acumular na estante
o cheiro impregnado no travesseiro
o jazz evaporar nas cinzas
o sussurro aniquilado
as pernas frias
o corpo lavado
e as ilusões maquiadas.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Descendo bombordo sudoeste a dez graus do Cruzeiro do Sul tem um porto
tem um ninho
que me encolho
e me resguardo
do turbilhão da vida.
Depois de rasgar o sul inteiro
e trespassar as marolas gentis
ancoro meu barquinho nesse porto
frágil e sutil como o sonho que fiz.