Então, ela só corria. Corria numa velocidade que jamais imaginasse. A chuva respingava agulhas em seu rosto, mas, enfim, ela corria. E correria o quanto tanto pudesse. Era bem verdade que as calçadas apresentavam saliências e protuberâncias que, às vezes, a fazia tropeçar. As árvores também impediam seu percurso. As raízes se prontificavam, rasgando as calçadas, rompendo o asfalto. E os galhos. Os benditos galhos, carentes de altura, apontavam seus olhos, exigiam portanto que seus braços se estendessem pela proteção. Mas que proteção? Proteção, apenas isso essa palavra quase intransitiva. Enquanto corria ela confundia sua respiração com as palavras proteção, proteção, proteção. Após alguns momentos, as sílabas já seguiam a expiração e a inspiração. Mas por que mesmo que corria?
Parou. Encostou a mão esquerda no tronco da árvore para lhe servir de apoio. Respirou alguns momentos. A chuva respingava em seu rosto, lava-lhe, esfriava-lhe a face. Os carros passavam. Os faróis encandeciam. Do outro lado da rua havia uma farmácia e, ao lado, uma padaria.
Seu coração bombeava fortemente algo quente que repercutia para seu rosto. Podia senti-lo à cabeça. Seria essa a substância pegajosa a razão de sua fuga? Sim, fuga havia. Havia fugido. E fugiria mais e mais e. Continuaria a correr, então. Suas pernas já estavam duras. Mal se articulavam. Seu calcanhar já não mais aguentava o peso de seu corpo. Seus pés não eram mais o mar que carregaria aquele navio para o infinito. Infinito? Qual seria mesmo o porto em que ancoraria? Não sabia. Era melhor continuar correndo, fugindo, pisando, brumando, flanando passando pelas ruas. Invisível, suada, peguenta, molhada de chuva e de dor.
Começara a contar. 1, 2, 3. Isso a tranquilizava e a mantinha concentrada. 23, 24, 25. Passara a Igreja, seguira a escola, deixara a praça para trás. 77, 78, 79. Na verdade, nem olhara aquela praça. Sabia-a de cor, mas não a olhara porque sabia mas porque não queria lembrar que ali havia duas lagoinhas com peixes, com vitória-régias, areia, terra, terra, terra, terra, terra, terra, perdera as contas. Mamãe, qual o númelo depois de dezenove? É dezedez?
Quando levava seus filhos para ver os peixinhos, ajoelhava-se no chão e apertava a terra. Apertava, apertava, até fazer um bolinho com o formato de suas mãos. E deixava ali naquele contato um pouco daquilo que ela era, ou pretendia ser. E largava o bolinho no chão para se misturar à terra. Não queria lembrar da terra, mas repetia terra, terra, terra. Os banquinhos, fora naqueles banquinhos. Especificamente no segundo banquinho do lado direito, à frente do laguinho. Fora ali que ela o olhara e ele a dissera: mãe, como os peixinhos voam de avião? Vamos ver se tem peixinhos nas nuvens? Ela não lembrava, não podia, não queria. No canto esquerdo, havia um sorriso constante de lado, discreto, os lábios finos. Ela bem os conhecia. Mais difícil do que responder às passagens de avião aos peixinhos, era explicar aos outros dois irmãos que o número três não resistira à chuva e morrera de pneumonia. Não podia lembrar e por isso falava alto embaixo da chuva: 83, 84,85 e corria, corria, corria e, suavemente o cheiro a impregnava. Mais uma vez ela parara. Apoiara as mãos nos joelhos olhando a calçada rente a seus pés. Mas não enxergava nada. Queria arrancar aquele cheiro de si. Os carros passavam como um fundo musical. As pessoas passavam como cavalaria. Então ela se permitiu sentar ali na calçada molhada. Ali onde estava encharcada, suada, repetindo terra, terra, terra.
Respirava.
Seu coração batia, pulsava. Ela escorria. Encolheu-se apoiando a cabeça entre os joelhos e chorou. Chorou compulsivamente; chorou como a chuva que caía.
Então levantou-se. Limpou o rosto na blusa suja como se conseguisse limpar as lembranças e voltou a correr. Dessa vez no sentido de volta. Corria. Corria de volta. Precisava voltar para casa. Precisava se recompor. Precisava lembrar a verdade. Por isso correra. Passara o colégio, a Igreja, não olhara a praça, continuara, a farmácia, a padaria. Precisava servir o jantar.
Chegara em casa, abrira a porta suja de terra e lama, ensopada, melequenta, encharcada, cansada, com as pernas duras, girando, girando, girando, pulsando, correndo, deixando de ser, sendo, sendo. Assim sendo, subiu as escadas nas pontas dos pés para não deixar pegadas, ou arranhar o assoalho, e tomara um banho para limpar aquela imundície, mas no fundo sabia que por mais que se lavasse as reminiscências daquela pequenina voz ressoaria sempre. Estaria sempre dentro de si. Olhou-se no espelho e não se viu. Sabia era que estava mesmo atrás daquela máscara, atrás daquela matéria dura, rígida ao ponto de se quebrar. Escovou os cabelos por pintar e os prendeu como se recolhesse seus segredos. Vestiu um moletom e uma blusa de malha. Calçou os chinelos acolchoados para aninhar seus calos e, finalmente, desceu as escadas investigando se não deixara um resquício de terra pelo caminho. Ao descer o último degrau e dobrar à esquerda para a cozinha, deixava a corrida, os números, a respiração, os bancos, a terra, os peixinhos, o cheiro, o sorriso. Tudo deveria ter escorrido com a chuva.
Encontrou o marido sentado à mesa lendo o jornal, dois filhos a gesticularem e gritarem pela resposta a fome, um banquinho azul pequenininho junto ao fogão, e servira o jantar.
Mais tarde assistira à novela, deitara-se a cama, ao lado direito e fechara os olhos. Se sonhasse seria melhor …. que fosse com a família perfeita que acabar de ver na televisão.