quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Cantada de botequim


E naquela manhã ela acordara assim: com as pernas enroladas nas pernas dele, a cabeça ancorada no dragão vermelho, os sonhos tranquilos e a respiração devagar, o coração batendo sangue misturado, os olhos resistiam para não abrirem porque sabiam que o impacto da realidade a inundaria seca e áspera da mesma forma que suas pernas passariam pelos restos da noite quente e… que passara como um simples suspiro, como os outros que espalhara pela noite quente.
 Os românticos agora são rinocerontes presos em museu. Mas…
Mas o tempo passa, ela ergue os olhos já acordados como quem ainda quer dormir. O museu acabou, aquele relicário dos dois. Ela se ergue silenciosamente e sai. Dá as costas e se lembra que há coisas melhores do que lutar contra dragões!
...ele, isto é atávico, vira-se para o lado e dorme outra vez!
Ela se veste procurando não enxergar as marcas pessoais pelos cantos. Veste os sapatos como quem ataca a armadura e pões-se sobre suas pernas duras como troncos. Caminha pelo apartamento sem olhar para trás. Pega o elevador, atravessa a portaria como se fosse invisível. Atravessa a rua na sorte. E pára para esperar o ônibus. Foi quando, pela primeira vez olha para trás.
Ela percebe então que algo no passado presente a atormenta, a mesma sombra insólita da noite anterior dissipa-se e a luz refletida agora em sua face revela um segredo e seus olhos, seus belhos olhos são só temor…E olham como num tique para o lado superior direito.
Ele ainda dorme quieto, como uma pedra que não percebe o antes e o depois. Ela já assiste aos primeiros lampejos de sol na parada de ônibus. Como medir a intensidade de tudo que lhe ocorrera? Os rinocerontes não pensam, são pedras paradas e imóveis. Assim deveria ser seus próximos dias. Suas lembranças tocariam naquela noite como rinocerontes, intransitivos. Assim ela pretendia.
O gigante contido dentro do peito dele acorda provido de toda consciência do ser que se tornara, seria o desejo de mudar? Assim imaginou mas sem querer apagar do ego o que acontecera, sem romance, sem dor, sem cor perfume ou flor, o rinoceronte caminha para onde aponta-lhe o horizonte,o gigante despertara, mas em outro ponto da metrópole ela olha para trás…
Ela anda pela cidade como se estivesse passeando devagar na areia da praia. os carros se mexem; a poeira levanta e ela levanta seus olhos. O zuzuzum que emerge das bocas avulsas ressoam como ondas. mas apenas enxerga marcas em sua pele e sente ainda o cheiro de sal - tempero do caminho, roedor de seus passos. passos hipnotizados pelo canto da sereia. Ele com muito esforço senta na cama, apóia a cabeça ressacada de vinhos baratos nas mãos e percebe no canto do quarto, as coisas fora do lugar. Sim, experimentara uma noite, uma grande noite. Andou pelo apartamento arrastando os pés, abriu a geladeira. Bebeu água no gargalo da garrafa e retornara para a cama. Precisava dormir mais. Nem olhara o relógio. Cantada de botequim

sábado, 3 de dezembro de 2011

vagarosamente

Vê! Ninguém vê! Será que ninguém vê o fogo que invade as ruas, que bate nas portas, que rasga telhado e se afoga nas bocas, nos pés, na saia de rosários; que lambe o chão em jato surdo e se enlaça em fita nos tornozelos cansados. Sopro de vento que sobe pelas coxas e agarra as costas com as mãos de fogo certeiro e se espalha e domina em arabescos de chamas, violento com força em laço vermelho; e se alastra e invade como água sem limite, nem forma. Vê, olha o fogo que arde, que queima, o fogo vivo e a obra cheia.

Tudo acontece de vagar, depois de que cai rapidamente. O silêncio e a zoada da chuva a abraçam solidamente assim na cama, sem sonhos, vazia. Ainda lhe resta o som da chuva. As crianças sorriem no quarto ao lado e ela virava de lado. Levantou-se como a gata que se espicha no canto. Era feliz assim, vagarosamente, flutuando. Olha a janela e procura o vento, uma criança imagina e fala. A sala úmida transpira a chuva, o silêncio. Sentou-se e observou o café que evapora com a chuva sobre a xícara. Liberdade seria sair pelo mundo a fora sem eira nem beira? Não. O telefonema tem o valor de um abraço e conota responsabilidade. Liberdade seria saltar de para-quedas numa imensidão azul, com o vento cortando as faces, mergulhada no silêncio e na plenitude do ser? Talvez. Muitas batidas no coração. Liberdade é poder pensar e ser o tamanho do pensamento. Ir além. Liberdade está trancada ali dentro na fumaça do café. No cheiro do colchão. Na zoada da chuva, no silêncio, no movimento vagaroso das pestanas. Liberdade é imaginária e nasce dentro como todas as outras sensações. Uma atmosfera morna reina na casa. Tomou um gole de café. Primeiro a rapidez e a entrega. Agora a lentidão. As decisões se espalham pelo ar e esperam a chuva passar.

Levantou-se do sofá com a xícara de café quente nas mãos. O chão ainda estava frio e ela ainda insistia em encontrar aquele sutil, invisível e singelo toque dentro da sua única e minúscula concha pulsante, o que a fazia mexer pé ante pé de encontro ao muro do destino. Palavras, onde encontrá-las?

As crianças ainda brincavam no quarto, a chuva respingava na janela, o vento balançava as folhas do coqueiro, da mangueira e do cajueiro. Decidiu ligar a TV, quem sabe encontraria na mediocridade da vida comum uma palavra simples, tão simples quanto sua felicidade enquanto signo em existência, e lhe daria, finalmente, a força do primeiro verso, o grão de feijão que pesa no papel e o domina.

Andou até a cozinha. Abriu a geladeira como se procurasse por algo. Esticando os olhos, achou a panela de sopa. Será que as crianças já estariam com fome?

Ainda eram cinco horas da tarde, mas pareciam mais, talvez por consequência do termômetro neutro da chuva. Encostou-se no balcão. Sim, estava feliz e tranquila, diga-se de passagem. Possuía o mundo em suas mãos, como as árvores do jardim aos seus frutos. Mas, perdera o verso.

A liberdade escorria pela janela, pelo vidro. Podia senti-la tão certamente como acordava todos os dias pela manhã. Não sei porquê, mas olhou seus pés e lembrou-se das estrelas. Bebeu outro gole de café não tão quente. Onde fora mesmo que encontrara aquele céu tão estrelado? Não sabia, não lembrava. Lembrava da imagem tão clara como as sensações que emanava de sua pele: o suor. Eita! Não o tinha naquele momento, mas bem o conhecia.

O que perdera com minhas decisões de pedra em água? Nada! Vulgos elogios, falsas sensações, talvez companhia imaginária. E o que ganhara? A força violenta da vida que veste meus chinelos, que invade em estado de sol invadindo o horizonte. Vê? Ninguém vê que a chuva por impedir que a chama invisível titubeasse a sua porta. Não, na sua não.

Mas as flores já existiam e brilhavam antes da admiração, antes de receberem nomes, classificações e cuidados. São primitivas, selvagens e sobrevivem a qualquer tempestade.

As labaredas não dançariam nas barras dessas saias. A água invadia, tombava, caia, lavava as ruas. Esse rio ainda há de transbordar. Ô, se há! Bebeu água agora. Atravessou o corredor de vagar, no ritmo do assobio. Examinou as crianças. Sim, eram felizes! Brincavam. Qual seria a palavra ideal para sustentar um verso?

As flores abrem cada uma ao seu tempo. O tempo é sempre certo. O segredo é enxergar o tempo certo das coisas. Elas acontecem e sabem quando acontecem. Quando acontecem, celebram. As mães esperam. As mulheres anseiam e ultrapassam, aceleram, forçam o tempo das descobertas. Erram e sabem, reconhecem, camuflam e explodem - nem sempre celebrações! Os homens fazem qualquer coisa a qualquer tempo, contanto que supram as reverberações fálicas, faliciosas - shiiiiiiiiiiiii - de cunho naturalista, animalesco, austrolopitequianos.

Sempre fora assim e sempre será assim. O mundo continua redondo e invadido por fenômenos fora de cogitação que assustadoramente e de repente carrega consigo todo um enigma.

Deitou-se numa das camas das crianças. Na mesinha ao lado havia um anjo. Um desses anjinhos de plástico, típicos enfeites de árvores de natal de camelô. Mas ela sabia e conhecia que uma das crianças acreditava, tinha fé naquela imagem. E aquele anjo era tudo que ela poderia oferecer… Pegou o anjo e o examinou enquanto pensava. Será? Como acreditar que Deus criara o mundo para dois seres antagônicos: Adão e Eva. Um estúpido e a outra, bem, ousada, curiosa. Sabia disso. Enxergava as coisas e seus graus mais profundos com tanta nitidez que testava continuamente o sufoco de limitar-se apenas a sua minúscula concha para evitar grandes distúrbios que rompam o equilíbrio harmônico dos seres que a cercam em seu nicho. Ela era uma pequena Eva - bem o sabia.

Sentou-se e sorriu. As crianças corresponderam. Ela continuou a segurar o anjo, mas… Evinha, talvez, imaginava. Qual seria a palavra mesmo para sustentar aquele verso? Pensando mais, deveria ser uma palavra livre de regência, como ela, livre de ambiguidades, mas plural em significância, tinha de ser transitiva, ou auto-suficiente, intransitiva, ou talvez apenas uma ligação entre o nome e a característica. Não importa. Afinal nós que fazemos nossa língua, nós que a conjugamos no tempo e no modo que quisermos, para isso que serve a democracia. Pensava. Nós conscientes em fogo e água, em mulher e homem, Adão e Eva e Vida. Nós que ousamos ora patinhos feios, ora cisnes, somos, sempre somos sempre. Somos completos em vida e dor e angústia e alegria e vida e morte e vida, mas… Faltava-lhe ainda o verso. Foi esquentar a sopa.